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A retórica entre a política e a filosofia
António Bento
Universidade da Beira Interior
Introdução
ProcuraremosfazerumavisitaguiadaàAntiguidadeafimdeficarmosasaber
umpoucomaisdoobjectodanossadisciplina(aRetórica).Assim,ensaiaremos
umabrevegenealogiadasrelaçõesenão-relaçõesentreafilosofiaearetórica
privilegiandoomodocomoquerumaqueroutraserelacionamàpolítica.Política
essaqueé,comalgumacerteza,nãosóoquepermitedistingui-las,mastambémo
quepermitedivisar,senãoatotalidade,pelomenosumaboapartedasrespectivas
fisionomias.Nãoéportantodeestranharquefaçamosumacerradamarcaçãoda
política,nointuitodesabermosoque,sobesseconceito,pensavamepraticavam
osgregosdotempodePlatãoedeAristóteles.
*
O abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julgamento e a
condenação de Sócrates, que constituem um momento decisivo na história do pen-
samento político, um pouco como o julgamento e a condenação de Cristo cons-
tituem um marco na história da religião. Poder-se-ia talvez dizer que a nossa
tradição de pensamento político teve início quando a morte de Sócrates fez com
que Platão se desencantasse com a vida da polis e, consequentemente, duvidasse
de certos princípios fundamentais dos ensinamentos socráticos.
O facto de Sócrates não ter sido capaz de persuadir os juízes da sua inocência e
do seu valor, tão óbvios, aparentemente, para os melhores e mais jovens cidadãos
de Atenas, fez com que Platão duvidasse da validade da persuasão. Donde, um
imenso cepticismo, presente em quase todos os seus diálogos, relativamente aos
propósitos e méritos científicos da retórica. Para nós, hoje, talvez seja um pouco
difícil captar a importância daquela dúvida, porque “persuasão” é uma tradução
muito fraca e inadequada para a velha peithen , cuja importância política se torna
patente no facto de Peithô , a deusa da persuasão, ter tido um templo em Atenas.
Persuadir, peithen , era a forma especificamente política de falar e, como os
atenienses se orgulhavam de conduzir os seus assuntos políticos pelo discurso e
António Bento, A retórica entre a política e a filosofia
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sem uso da violência – nisso se distinguindo dos bárbaros –, acreditavam que a arte
mais alta e verdadeiramente política era a retórica, a arte da persuasão. O discurso
de Sócrates na Apologia é um dos grandes exemplos disso e é precisamente contra
essa defesa que Platão escreve no Fédon uma espécie de “apologia revista ou
revisitada” que, não sem uma ponta de ironia, ele afirma ser “mais persuasiva”
( pithanoteron , 63 b), por terminar, justamente, com um mito do Além, que incluía
castigos corporais e recompensas, um mito calculado para amedrontar o público
em vez de se limitar simplesmente a persuadi-lo.
A ênfase posta por Sócrates na sua defesa perante os cidadãos e juízes ateni-
enses tem a sua explicação no facto de o seu comportamento ter em vista o bem
da cidade. No diálogo Crítias , ele havia explicado aos seus amigos que não podia
nem deveria, de maneira alguma, fugir, mas, pelo contrário, deveria – justamente
por razões políticas – ser condenado à morte. Ao que parece, não foi apenas aos
juízes que ele não conseguiu persuadir; também não conseguiu convencer os seus
amigos. Por outras palavras, a lição a tirar é a seguinte: afinal a cidade não preci-
sava de um filósofo e, os amigos, não necessitavam de argumentação política.
Podemos então afirmar que, intimamente ligada à dúvida de Platão quanto à
validade da persuasão está a sua enérgica condenação da doxa , a opinião, que
não só atravessou por inteiro as suas obras políticas, como, além disso, se tornou
numa pedra-de-toque do seu conceito de verdade. A verdade platónica, mesmo
quando a doxa não é mencionada, é sempre entendida como justamente o oposto
da opinião. Podemos portanto dizer que o espectáculo de Sócrates submetendo
a sua própria doxa às opiniões irresponsáveis dos atenienses e sendo suplantado
por uma maioria de votos, fez com que Platão desprezasse as opiniões e ansiasse
por padrões absolutos. O que prova a pouca afeição de Platão à democracia e à
opinião. Tais padrões, pelos quais os actos humanos poderiam ser julgados e o
pensamento poderia atingir algum grau de fiabilidade, tornaram-se, daí em diante,
o impulso primordial da sua filosofia política, influenciando mesmo a doutrina
puramente filosófica das ideias. Contudo, talvez não tenhamos razões para pensar
que a ideia do mundo das ideias tenha sido antes de tudo e prioritariamente um
conceito de padrões e de medidas; nem que a sua origem tenha sido fundamental-
mente política. No entanto, esta interpretação tem a sua razão de ser e é mesmo
bastante compreensível e justificável, tendo em conta que foi o próprio Platão o
primeiro a usar as ideias para fins políticos, ou seja, a introduzir padrões absolutos
na esfera dos assuntos humanos – esfera essa, na qual, sem esses padrões trans-
cendentes, tudo se tornaria relativo. No entanto, como o próprio Platão salientou,
não sabemos o que é a grandeza absoluta. Apenas percebemos algo como maior
ou menor em relação a alguma outra coisa.
António Bento, A retórica entre a política e a filosofia
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( BREVE RESUMO DA APOLOGIA DE SóCRATES )
Argumento
A Apologia é o discurso pronunciado por Sócrates no tribunal, diante dos 501 juí-
zes sorteados para o julgarem. é uma composição de génese escritural, que deverá
ter alguma relação com o discurso eventualmente pronunciado por Sócrates, mas
que dificilmente se poderá entender como uma sua transcrição fiel.
A ironia marca-a profundamente, pois, caracterizando-se como uma peça con-
tra a retórica, nem por isso – antes pelo contrário – ignora as regras da arte. Na
realidade, é como se as reconstituísse num outro plano, procurando conferir-lhes
um novo sentido. No entanto, a denegação de todo e qualquer valor epistemo-
lógico à persuasão traduz-se tragicamente para Sócrates no facto mesmo da sua
condenação à morte. Aplica-se aqui, à letra, a expressão ironia do destino . Ao
recusar-se a persuadir, sob o modo retórico, os juízes e a assistência, insistindo
obstinadamente em dizer a verdade, nada mais que a verdade e só a verdade, Só-
crates acaba por assinar a sua própria condenação à morte. A verdade, porém, é
que Sócrates não prescindiu, para sua defesa, de usar os meios retóricos da lin-
guagem. Nem podia prescindir. Pela simples razão de que, opondo a persuasão à
verdade, não poder deixar de ser persuasivo: correndo assim o risco de ninguém o
compreender e acreditar. Em qualquer caso, o ter-algo-por-verdadeiro pressupõe
a crença na existência da verdade e, como tal, não pode prescindir do efeito da
persuasão. Simplesmente a sua verdade e a opinião do verdadeiro na audiência e
nos juízes que o escutavam não coincidiu. Azar o dele! Sócrates acabou por se
defender usando as mesmas palavras que costumava usar na praça, junto dos ven-
dedores, argumentando, para sua defesa, que era estranho ao modo como se fala
num tribunal. O que significa que afrontou, desprezou e insultou o tribunal suge-
rindo ou insinuando que nele não se procura a verdade, antes o efeito da opinião
e da persuasão. Letal acusação.
é o seguinte, o resumo do diálogo:
17 a – 18 a – Contraposição da persuasão à verdade, nos discursos da acusação
e do próprio Sócrates: a excelência do orador consiste em dizer a verdade.
18 a – 20 a – Distinção das antigas e das mais recentes acusações: a sua
motivação.
20 a – 20 c – O tema da sabedoria: a aretê num homem.
20 c – 21 b – O oráculo: Sócrates é o mais sábio dos homens
21 b – 23 b – As inquirições socráticas: a sabedoria da ignorância – o valor
nulo da sabedoria humana.
23 b – 24 a – A origem das calúnias: a filosofia e o seu efeito sobre os jovens.
24 b – 26 a – As recentes acusações: interrogatório de Meleto.
António Bento, A retórica entre a política e a filosofia
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26 a – 28 a – Conclusões de Sócrates: Meleto não se preocupa com a educação
dos jovens e é ignorante no que diz respeito às coisas divinas.
28 a – 30 b – A inquirição sobre o valor da sabedoria humana, realizada em
obediência ao comando implícito do deus, constitui a prática do filósofo, que Só-
crates toma como a mais alta das missões que lhe foram confiadas e de cujo cum-
primento não desistirá.
30 c – 33 a – Sócrates é o único homem disposto a persistir nessa missão,
em defesa da sua cidade; por essa razão, renunciou aos cargos políticos, embora,
sempre que estes lhe tenham sido atribuídos, se tenha mostrado tal como é na vida
privada.
33 a – 35 d – Sócrates não é pago, nem há testemunhas de que tenha cor-
rompido alguém, jovem ou velho. Recusa-se a suplicar o perdão dos juizes,
entregando-se à sua decisão e à dos deuses.
Sócrates é julgado culpado, devendo agora propor uma pena em alternativa à
morte, pedida pelos acusadores.
35 d – 38 b – De entre as penas possíveis, Sócrates considera o exílio ou
o pagamento de uma multa, embora contra vontade, pois, nenhum crime tendo
cometido, nenhuma pena julga merecer. Recusando o exílio, aceita uma multa no
valor de uma mina (mais não poderá pagar), mas os amigos pedem-lhe que eleve
para trinta minas o seu montante.
Condenado à morte, Sócrates dirige-se aos juízes que abandonam o tribunal e,
depois, aos amigos que o rodeiam.
38 c – 39 d – Os juizes não quiseram esperar pela sua morte natural, que não
deveria tardar. Nada ganharam com essa decisão, pois ele não teme a morte e os
discípulos deverão prosseguir a missão que lhe tinha sido confiada.
39 e – 42 a – Sócrates está certo de tudo ter corrido pelo melhor, pois a voz
que costumava adverti-lo, na iminência do erro, não se manifestou. Assim, a
morte deverá ser um bem – a destruição ou a passagem da alma a outro lugar –
em qualquer dos casos não podendo sobrevir nenhum mal a um homem justo. é
preciso ter esperança no que a morte nos traz, pois só os deuses poderão saber se
ela é ou não melhor do que a vida.
Verdade e opinião
A oposição entre verdade e opinião foi, sem dúvida, a mais anti-socrática con-
clusão que Platão tirou do julgamento de Sócrates. Ao fracassar em convencer a
cidade, Sócrates mostrara que a cidade não é um lugar seguro para o filósofo, não
só no sentido de que a sua vida não está garantida em virtude da verdade que pos-
sui, mas também no sentido, muito mais importante, de que não se pode confiar
à cidade a preservação da memória do filósofo. Se os cidadãos puderam conde-
nar Sócrates à morte, era muito provável que o esquecessem depois de morto. A
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sua imortalidade terrestre só estaria salvaguardada se os filósofos se pudessem
inspirar numa solidariedade própria, que se opusesse à solidariedade da polis e
dos seus concidadãos. O velho argumento contra os sophói , os sábios, recorrente
tanto em Aristóteles quanto em Platão – o argumento de que eles não sabem o que
é bom para si próprios (o pré-requisito para a sabedoria política) e de que parecem
ridículos quando se apresentam na praça pública, tornando-se motivo de chacota,
como ocorreu com Tales de Mileto, que, olhando para os céus, caiu num poço
que tinha sob os seus pés, fazendo rir uma jovem criada trácia -, foi dirigido por
Platão contra a cidade. Assim procurou Platão inverter a relação entre o político e
o filosófico, sendo este último o único capaz de oferecer critérios transcendentais,
sem os quais tudo permaneceria desesperantemente relativo.
Para compreender a barbaridade da exigência platónica de que o filósofo se
tornasse o governante da cidade, não podemos esquecer os preconceitos comuns
que a polis tinha contra filósofos, embora os não tivesse contra artistas e poetas,
por exemplo. Apenas o sóphos – que não sabe o que é bom para si próprio –
não poderá saber o que é bom para os outros, para a polis. O sóphos , o sábio
como governante, deve ser visto em oposição ao ideal corrente do phronimos , o
homem de compreensão, cujos insights sobre o mundo dos assuntos humanos ( ta
ton anthropon pragmata , nas palavras de Platão) o qualificam para liderar, em-
bora, obviamente, não para governar: Le roi regne et ne gouverne pas , como diz
a fórmula teológico-política, deísta e liberal, dirigida em 1600 contra Segismund
III, Rei da Polónia. Isto, claro, do ponto de vista de Platão. A filosofia, o amor
à sabedoria, não era, de modo algum, tida como equivalente desse insights, dessa
phronésis . Só o sábio se ocupa e preocupa com os assuntos exteriores à polis . E
Aristóteles, por exemplo, concorda inteiramente com essa opinião pública quando
afirma: “Anaxágoras e Tales eram homens sábios, mas não homens de compreen-
são. Não estavam interessados no que é bom para os homens ( anthropina agatha )”
( ética a Nicómaco, 1140 a, 25-30 e 1141 b, 4-8).
Platão não negava que as preocupações do filósofo fossem as questões eter-
nas e imutáveis, as questões não humanas. Discordava, no entanto, de que isso
o tornasse incapaz ou inapto para desempenhar um papel político. Discordava
da conclusão, tirada pela polis , de que o filósofo, sem a preocupação com o bem
humano, corria ele próprio o risco de se tornar um inútil. é de salientar, porém,
que a noção de bem ( agathos ) de que aqui se fala não tem qualquer conexão com
o que se quer designar como bondade num sentido absoluto; este agathos signi-
fica exclusivamente bom-para-algo , benéfico ou útil ( chrésimon ), sendo, portanto,
instável e acidental, contingente, uma vez que não é necessariamente o que é, po-
dendo, a cada vez, ser sempre diferente.
Como é sabido, a acusação de que a filosofia pode privar os cidadãos da sua
aptidão pessoal está contida numa célebre declaração de Péricles, segundo a qual,
amamos o belo sem exagero e amamos a sabedoria sem suavidade ou efemi-
Zgłoś jeśli naruszono regulamin